Ailton Salviano

Nas ciências geológicas existe um princípio estabelecido pelo naturalista escocês Charles Lyell (1797-1875) que diz “o passado é a chave do presente”. Hoje, os ambientalistas copiam o raciocínio de Lyell e apelam para a paráfrase ao dizer que “o presente é a chave do futuro”. Não foram poucas as vezes que estudiosos da natureza observaram o nosso passado, para trazer lições ou orientações ao presente. Mas, nem sempre costumes pretéritos são aceitos pela sociedade moderna.

Ao ler a edição de junho de 2006 da revista francesa “Science & Vie”, deparei-me com uma matéria que contempla de forma extraordinária, toda a história evolutiva do “homo sapiens”. Ao abordar o emergir da cultura humana sob o título “os diferentes modos de viver dos nossos ancestrais”, um item despertou-me a atenção: a antropofagia ou o canibalismo dos nossos antepassados.

Os antropólogos fazem uma sutil distinção entre antropofagia e canibalismo. O termo antropofagia (do grego, ântropos=homem e phagos=comer) é aplicado para o ato de consumir partes ou todo o ser humano. A rigor, esse ato pode ser realizado por qualquer animal: um leão, um tubarão, um tigre e mesmo, o próprio homem. O canibalismo é restrito para a ação de uma espécie alimentar-se de outro indivíduo da mesma espécie, aí incluído o homem. Tornou-se, porém, comum, usar-se antropofagia para designar a canibalização humana.

O tema é considerado um ato de horror pela cultura ocidental judaico-cristã. A sociedade o reprime intensamente. É de profunda repulsa e comparável ao incesto ou o parricídio. Juízo sobre essa conduta humana à parte, um conjunto de indícios coletados em vários sítios paleolíticos (dois milhões de anos atrás) e neolíticos (dez mil anos a.C) reforçam a idéia que os nossos antepassados foram canibais.

Na Gran Dolina de Atapuerca (Espanha), foram encontrados seis exemplares do “homo antecessor” que viveram há cerca de 800 mil anos; essa é a espécie dos nossos antepassados mais antiga da Europa e última espécie comum entre o “homem neandertal”, “homo sapiens” e o “pré-neandertal”. Nos representantes do “homo antecessor”, entre ossadas de homens, mulheres e crianças foram encontradas marcas de desarticulação e descarnificação.

Outro forte indício de canibalismo vem da Gruta de Krapina a 40 Km de Zagreb (Croácia) onde foram encontradas centenas de ossadas de mais de 40 homens de Neandertal adultos e adolescentes e ainda umas trinta de crianças com idade média de 13 anos. Ossos como os úmeros, os fêmures e as tíbias estavam fraturados no mesmo estilo que se faz com a caça. Alguns crânios estavam perfurados para facilitar a extração dos miolos.

Há vários estudos arqueológicos abordando o tema canibalismo em diversas cavernas da Europa. Restos de homens de Neandertal encontrados em escavações na caverna conhecida como o abrigo Moula-Guercy em Ardèche (França) deram origem a dezenas de trabalhos que comprovam o canibalismo entre essa espécie.

No Brasil, em passado mais recente, embora contestada por alguns historiadores, existe a conhecidíssima história do Bispo Sardinha. A versão mais difundida é que os Caetés, grupo indígena tupi-guarani que habitava o litoral do nordeste entre a Paraíba e a foz do Rio São Francisco, tenham promovido um banquete antropofágico em 16 de junho de 1556. Os números que constituíram o dantesco cardápio são assustadores: 91 náufragos, entre eles Dom Pero Fernandes Sardinha, o primeiro bispo do Brasil.

O tema volta à tona agora em pleno século XXI, quando indícios apontam que alguns índios de etnia Kulina, uma aldeia situada nas proximidades da cidade de Envira, extremo sudoeste do Estado do Amazonas, após assassinarem um jovem não-índio com problemas mentais, comeram partes do seu corpo. O cadáver, dilacerado e faltando alguns órgãos, foi encontrado em um rio que passa pela aldeia.

  1. Parabéns pelo artigo, bem apropriado ao tema que estão abordando pela mídia.

    Algo “natural” em algumas tribos e no desenvolvimento da espécie humana como sociedade organizada, o canibalismo talvez era visto por esses povos como algo tão equivalente do que se alimentar de um animal.

    Tenho esta opinião pois recordo de outros estudos que os indios fazem oferendas aos deuses da caça ou aos espíritos dos animais abatidos para que tragam saude e sabedoria. Eles, os índios, não se viam superiores aos animais.

    Sacrifícios eram feitos na américa do sul e os guerreiros de tribos inimigas, os mais bravos, eram oferecidos a comunidade vencedora como um reconhecimento de tais feitos.

    Mas a evolução cognitiva humana nos fez a vantagem de representar tais atos abomináveis, mesmo que sagrados, em hóstea e vinho, o qual o próprio Bispo Sardinha já se contentou em saborear.

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