O PELICANO DE MUSSET E O DESASTRE NO GOLFO
Publicado em O Jornal de Hoje (23-08-2010) (*)
Neste final de agosto de 2010, o cenário no Golfo do México mudou pra melhor. O presidente americano esteve em uma das praias da região e até arriscou uns mergulhos com a família para mostrar aos seus patrícios que a normalidade ambiental parece está voltando. Porém, não foi isso que se viu no último trimestre. Os milhões de barris de petróleo jorrados sem controle, a partir de um poço na área do golfo, provocaram o maior desastre ambiental dos Estados Unidos.
Uma triste cena, repetida inúmeras vezes pela televisão de todo o mundo, me despertou a atenção. Envolvido numa emulsão de óleo e água, um pelicano triste com a plumagem pesada e escorrida era a representação sombria daquele acidente. O quadro escolhido a propósito, haja vista que o pelicano é um dos símbolos do Estado da Louisiana, um dos litorais mais atingidos, expressava todo o sofrimento da fauna regional e entrara definitivamente para a coleção das imagens inesquecíveis.
A lânguida figura daquela ave aquática, mostrada exaustivamente pela mídia, me transportou para um fato acontecido há 50 anos durante o curso científico do Colégio Marista de Natal. Em uma aula de francês, a tradução do poema “A Alegoria do Pelicano” do poeta e dramaturgo francês, Alfred de Musset (1810-1857) prendia a atenção de toda a turma. Embora aquela história tivesse me emocionado, a minha meninice não permitiu alcança-la ou entende-la em toda a sua plenitude.
No poema, o que marcou não só a mim, mas a todos os demais alunos, foi sabermos que o pelicano na falta de alimentos, dilacerava seu próprio peito para saciar a fome dos seus filhotes. Esta versão perdurou por muito tempo, inclusive à época em que Musset escreveu o poema em 1835. Por conta dessa pseudo-interpretação da atitude daquela ave, no passado remoto o pelicano era o símbolo do sacrifício. Isto estimulou muitas interpretações teológicas e esotéricas.
Quem não se lembra da máxima cristã de derramar seu sangue pelos seus filhos? E, desta forma, o pelicano com a sua aparente autoflagelação, ao longo dos anos, foi considerado também o símbolo da caridade, do sacrifício e do amor maternal. Algumas instituições herméticas tinham-no como propagador da espécie à medida que das suas entranhas alimentava seus descendentes.
Modernamente, sabe-se que o pelicano não dilacera seu próprio corpo para alimentar a sua prole. Na realidade, ele possui uma bolsa logo abaixo do bico em direção ao papo que serve para guardar alimentos. Numa espécie de regurgitação, a ave utiliza-se do bico e enfiando-o na bolsa, retira os alimentos para seus filhotes. Na sua irracionalidade pode provocar feridas e sangramentos.
Apesar dessa nova explicação, o simbolismo da autoflagelação do pelicano não foi esquecido ou apagado. Pelo contrário, atravessou gerações e continua como extraordinário emblema quando se quer ilustrar doação, amor, sacrifício e caridade.