O VELHO FIADO E O JOVEM CARTÃO DE CRÉDITO
Publicado em “O Jornal de Hoje” em 02.12.2010
Simeão, Terto, Zequinha, Queiroz, Valfredo, Hermínio, Antenor, Gustavo eram velhos proprietários de bodegas na época da minha infância no bairro do Alecrim em Natal. Esses estabelecimentos comerciais eram conhecidos pelo nome do dono e comportavam uma ampla variedade de produtos. Do talco ao fumo de corda; da lapada de cachaça ao querosene no retalho; da peça de corda ao poli (picolé); do refresco de maracujá à fezinha do jogo do bicho.
Vender aos clientes confiáveis para receber no final do mês era o procedimento comum a todos eles. Este era o tradicionalíssimo fiado, responsável pela maior parte do faturamento das bodegas. Quando “um pai de família” falava fiado a um bodegueiro e recebia um sim, era uma massagem de ego impagável. Era uma prova autêntica da sua honradez e honestidade. Ah! Velhos tempos!
No tempo em que a vergonha era qualidade inerente à maioria dos cidadãos, a palavra valia mais que a assinatura. Não havia cobrança de juros, tampouco avalistas; a confiança era recíproca. O bodegueiro vendia na certeza de receber no final do mês. A caderneta do fiado, que ficava em poder do comerciante, era a única prova incontestável da dívida contraída. Ninguém queria ter a pecha de mau pagador.
As bodegas foram perdendo espaço até praticamente desaparecerem com o advento dos supermercados, esta bem sucedida invenção americana. Hoje, estes novos estabelecimentos comerciais estão instalados inclusive na periferia das cidades e variam de dimensões conforme a demanda. A princípio, as vendas eram à vista e, em seguida, começaram a aceitar cartões de crédito das grandes marcas. Não demorou muito até os supermercados, com o respaldo de uma financeira, criarem seus próprios cartões.
A venda a prazo nos cartões não deixa de ser uma modalidade travestida do velho fiado com requintes de modernidade. O comerciante, como antigamente, não vê a cor do dinheiro na hora da compra; recebe apenas no vencimento. Na data do pagamento, o cliente ainda desfruta da enganosa opção da parcela mínima. Neste caso, ao débito restante são acrescentados juros extorsivos praticamente desconsiderados pelo devedor.
Diferente do velho bodegueiro, os supermercados e as instituições de crédito que bancam os cartões possuem, obviamente, grande suporte financeiro e um número muito superior aos clientes da bodega. Seu João, biscateiro na feira do Alecrim, não tem carteira assinada, mas conseguiu um cartão de crédito no supermercado com limite de mil reais. Está pendurado desde o início do ano.
Seu João paga apenas a parcela mínima mensal e o seu limite de crédito está bem próximo, por conta dos juros mensais superiores a 10% e que são aplicados ao seu saldo devedor. Sem considerar esta vergonhosa extorsão, alguns políticos costumam dizer que, nos últimos anos, o brasileiro aumentou o seu poder de compra. Neste caso, não seria um aumento do limite do fiado?