O COMPRIMIDO QUE DEFORMOU CRIANÇAS
Ailton Salviano
Reportagem publicada em O POTI de 13.01.2008
Em agosto de 1960, dona Margarida da Silva Lima residia em São José de Mipibu (RN) e estava grávida de dois meses. Seu esposo, que trabalhava na antiga Sucam (Superintendência de Campanhas de Saúde Pública do Ministério da Saúde), em conversa com o médico do órgão disse que a esposa grávida estava com problemas de insônia e sentia fortes enjôos. O médico lhe deu uma caixa (amostra grátis) de ‘‘SLIP’’, comprimidos indicados exatamente para aqueles males.
Dona Margarida tomou um comprimido por dia de um total de oito e teve uma sensível melhora. Em 8 de março de 1961, após um parto complicado, feito por uma parteira, nasceu a garota Vanilza com deformações nos membros superiores. A parturiente com problemas de placenta colada foi transportada para a Maternidade Januário Cicco em Natal.
Como aconteceu com milhares de famílias daquela época em dezenas de países, os Lima não associaram, de imediato, o problema da bebê Vanilza aos comprimidos receitados pelo médico e ingeridos durante a gravidez de dona Margarida. Em novembro de 1961, a família leu uma reportagem na revista semanal ‘‘O Cruzeiro’’ sobre crianças deformadas nascidas na Alemanha. Na reportagem, dona Margarida viu as fotos de várias caixas de comprimidos que causaram as deformações e de imediato identificou o ‘‘SLIP’’. Agora havia uma explicação convincente para o problema da filha.
Vanilza e várias outras crianças recém-nascidas naquela época, em alguns países, foram vítimas de um produto farmacêutico que provocou uma das maiores tragédias mundiais da história dos medicamentos. Em outubro de 2007, fez 50 anos do lançamento no mercado internacional de um comprimido que está no epicentro dessa história, produzido à base da substância talidomida, considerado não tóxico, fabricado na Alemanha. Em 1958, esse medicamento chegou ao Brasil.
Segundo os estudiosos desse fato, o episódio envolveu o descaso dos laboratórios nos testes sobre efeitos colaterais, a ganância industrial e a irresponsabilidade dos órgãos oficiais de controle de medicamentos. A conseqüência foi o nascimento de 10 a 15 mil crianças com deformações congênitas, inicialmente na Alemanha e Inglaterra e, em seguida, em dezenas de países, inclusive no Brasil.
Pela semelhança física dos recém-nascidos, disformes com os membros das focas, as deformações são conhecidas pela Medicina como focomelia. As deformidades incluem o encurtamento dos membros superiores e inferiores e a ausência parcial ou total de mãos, pés e dedos. Ocorrem também cardiopatias, alterações nos olhos, nas orelhas e no aparelho digestivo.
Luta
Vanilza de França Lima, a filha de dona Margarida, está hoje com 46 anos. É casada tem um filho normal de 3 anos e, mesmo com muitas dificuldades que enfrenta para locomover-se, trabalha como supervisora de alunos do Colégio Winston Churchill. Não se nega de falar sobre muitos momentos em que foi vítima de discriminação na infância e na juventude por conta da sua deformidade.
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Vanilza de França Lima enfrenta dificuldades físicas, mas leva uma vida feliz
Quando tomou conhecimento que tinha direito legal a uma pensão vitalícia foi à luta. Enfrentou muitas barreiras. Submeteu-se a uma junta médica, tirou várias fotos e radiografias. Para conseguir o que lhe era de direito, teve que entrar na Justiça. Após cinco anos, conseguiu comprovar que era vítima da talidomida e por fim, teve direito à pensão, atualmente no valor de R$ 600 mensais. ‘‘Essa pensão é minha vida! Não sei como poderia viver sem ela’’, diz Vanilda que acredita ter mais alguém no Rio Grande do Norte, vítima da talidomida e que desconhece os seus direitos.
PESQUISADORA DEFENDE CUIDADOS
A farmacêutica potiguar Nair Ramos de Souza pesquisa a talidomida há seis anos, quando iniciou a dissertação de mestrado na Faculdade de Medicina de Fortaleza. Atualmente trabalhando no Ministério da Saúde, em Brasília, ela defende uma proposta de divulgação dos cuidados e orientações para o uso correto de medicamentos. Segundo Nair Ramos, com a crescente prática da automedicação no Brasil, urge a necessidade de promover-se campanhas de orientação quanto ao uso racional de medicamentos. Isto tem reflexos na qualidade de vida das pessoas e na diminuição de custos do sistema de saúde.
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A farmacêutica Nair Ramos passa orientações para o uso correto de medicamentos
‘‘O surgimento de novas indicações da talidomida, justificadas por diversos autores, reforça a sua excelente resposta terapêutica. No entanto, o aparecimento de novos casos de recém-nascidos deformados e as falhas nos mecanismos de controle existentes obrigam-nos a prestar uma atenção rigorosa a esse fármaco. É preocupante a insuficiência de dados recentes sobre os efeitos adversos da talidomida, principalmente quanto ao seu uso prolongado’’, complementa Nair Ramos.
Uma pequena parte da população vai ser beneficiada com a reabilitação da talidomida, haja vista que as enfermidades que o medicamento atende são consideradas raras. É um grande desafio para o monitoramento da segurança do medicamento, atividade que depende da responsabilidade e do comprometimento de vários atores sociais que abrangem consumidores, profissionais da saúde, indústria farmacêutica, mídia e órgãos oficiais reguladores.
Retorno
Em 1964, o dermatologista israelense Jacob Sheskin atendia a um paciente com sérias complicações provenientes da hanseníase (lepra). Ao procurar um medicamento que fizesse o paciente dormir, lembrou-se da talidomida que originalmente fora recomendada contra insônia. Ele deu então dois tabletes ao paciente que, após ingerir a droga, dormiu por longas horas. Quando acordou foi capaz de levantar da cama sem ajuda. Experiências posteriores com a talidomida revolucionaram e tornaram mais efetiva a cura da lepra.
Dessa forma, o medicamento foi reabilitado e voltou ao mercado indicado para o tratamento de graves enfermidades como lúpus eritematoso, afecções associadas à AIDS, enxerto-contra-hospedeiro e outras. O grande desafio para os países é realizar um rigoroso controle na nova utilização da talidomida e evitar outras gerações de crianças deformadas.
REMÉDIO COMEÇOU A SER COMERCIALIZADO EM 1957
Em 1953, os laboratórios da indústria farmacêutica suíça CIBA sintetizaram pela primeira vez a talidomida. A empresa desistiu de comercializar o produto ao notar a aparente ausência de propriedades farmacológicas. No ano seguinte, a empresa alemã Chemie Grünenthal sintetizou a mesma substância e iniciou a sua comercialização em outubro de 1957. O comprimido era considerado um sedativo sem toxicidade e podia ser vendido sem prescrição médica.
Com o nome de Contergan, o comprimido foi lançado no mercado alemão com uma ostensiva campanha publicitária e logo se transformou em um dos líderes de venda. Em outros países o mesmo produto teve nomes comerciais diferentes como Kevadon, Distaval, Talimol e Softbon. No Brasil, os comprimidos e gotas à base de talidomida chegaram em 1958 e foram comercializados com os nomes de Ectiluram, Sedalis, Sedim, Slip, Ondosil e Verdil.
Sem a exigência da receita médica, os comprimidos foram considerados na época o melhor soporífero (que provoca sono). O seu uso foi estendido para curar nevralgias, asma, tosse e como antiemético (evitar vômitos) para as grávidas. Era um sedativo de preço baixo que podia ser ingerido em quantidade sem oferecer nenhum perigo de intoxicação ou efeito colateral. Até então, esses efeitos eram desconhecidos.
Na Alemanha em 1959, começaram os relatos médicos sobre o aumento de nascimentos de crianças com malformações congênitas caracterizadas por defeitos nos ossos dos braços das pernas e com mãos e pés anormais. Em 1961, foram registrados 477 casos. Não foi fácil estabelecer a relação entre os bebês deformados e os comprimidos.
Em novembro daquele ano, durante um encontro de pediatras na cidade alemã de Dusseldorf, o médico Widukind Lenz levantou, pela primeira vez, a possibilidade das deformações dos recém-nascidos estarem associadas à talidomida. As suspeitas de Lenz foram comprovadas por outros estudos. A tragédia havia se concretizado em vários países. No final de 1961, o medicamento foi retirado do mercado na Alemanha e Inglaterra.
No Brasil, após a comprovação dos efeitos maléficos do comprimido, o governo federal por meio de ato administrativo do Serviço Nacional da Fiscalização da Medicina e Farmácia (SNFMF) cancelou o registro da comercialização da talidomida no Brasil. Porém, segundo os estudiosos do tema, provavelmente por falta de comunicação ou fiscalização, os comprimidos permaneceram disponíveis no mercado até 1964. Os casos de deformação ocasionados por ingestão do comprimido no período de 1961-1964 poderiam ter sido evitados.
Ursula e Fabiane
ótima reportagem, eu Fabiane não havia falado ainda sobre esse acontecimento, até que minha tia comentou sobre esse assunto e chegamos até este site.
Parabéns pela divulgação deste conteúdo!
Anchieta Júnior
Parabéns Ailton,
reitero as observações feitas pelos colegas acima, acrescentando que é muito bom a gente acompanhar relatos pertinentes de algo que fez parte da história do RN.
Parabéns “laureado”.
julio
E isso ai Ailton concordo com o “Arthur namorador” mto bem relatado com toda clareza explicativa!!
Parabens!!
Arthur Tavares Cortês
Ótima reportagem, Ailton!!!
Júlio me avisou ontem e tentei encontrar no site do Diário, mas o link tinha saído. Parabéns pela apuração (que vim acompanhando com teus relatos), um tema pertinente, interessantíssimo!
Vou recomendar para minha amiga, que futuramente será médica, o teu texto.
Valeu, rapaz! Saudades das nossas conversas!!!
Aquele abraço!